O texto abaixo fora publico na Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB nº 6, e é de utoria do Doutor Darci Norte Rebelo [OAB/RS 2.437]. Membro daComissão Nacional de Acesso à ustiça doConselho Federal. Advogado em P.Alegre.
O NÃO-DITO E O ENCOBERTO NA SÚMULA 382 DO STJ
«Súmula 382/STJ - A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si
só, não indica abusividade».
“Tudo que é dito – lê-se em Gadamer - não tem sua verdade simplesmente em si mesmo, mas remete amplamente ao que não é dito” [Verdade e Método, II, p. 181]. Para esclarecer isso, diz ele, distinguem-se duas formas em que o dizer movimenta-se para trás de si mesmo: o que no dizer permanece não dito, tornando-se, porém, presente como nãodito no dizer e, além disso o que no dizer se encobre” [Idem, ibidem, p. 210]. A “reflexão hermenêutica ainda mais profunda – agrega – não se refere apenas ao não-dito, mas ao que o dizer encobre” [idem, ibidem, p, 212]. O nãodito e o encoberto são a chave para abrir as portas do entendimento da Súmula 382 do STJ. O texto utiliza a fórmula de uma inequação, pois a expressão “Juros superiores a 12% ao ano não são necessariamente abusivos” engloba qualquer valor maior que 12% ao ano, ou seja, um número sem limite como uma terra sem horizonte, uma galáxia sem fronteiras. Em matemática chama-se inequação a um número cujo limite é o infinito. Superiores a 12% pode ser qualquer número próximo a 12 como pode ser um número virtual existente além da nossa imaginação. Qualquer número. A Súmula, portanto, nasce com o signo da desproporção e colide, frontalmente, com o princípio do devido processo legal substancial expresso no art. 5º, LIV e no princípio da defesa do consumidor do art. 170, V, ambos da Constituição. Essa forma estranha de criar uma súmula envolve, portanto, um não-dito e encobre sentidos contrários ao ordenamento fundamental. A Súmula 382, na verdade, é uma cilada. Quando ela fala em 12% ao ano, a voz que se ouve tem remansos de inocência, lembrando a linguagem moderada do Código Civil quanto a juros de 1% ao mês ou 12% ao ano. Quando a Súmula utiliza os termos “superiores a 12% ao ano”, ela perde a mansidão e [des]oculta a face assustadora de um olhar sem limites. A leitura do Resp 1.061.530-RS, de 22 de outubro de 2.008, indicado como uma das primeiras fontes recentes da Súmula, levanta o véu das origens da Súmula 382. “As premissas básicas da Súmula foram lançadas no Resp. 407.097-RS”, lê-se no Acórdão do Resp 1.061.530. Quem voltar àquela fatídica tarde 12 de março de 2.003 em que essas “premissas” foram lançadas no Resp. 407.097-RS e em outro, julgado na mesma oportunidade [Resp. n. 420.111-RS], verá que a 2ª. Seção do STJ discutia a abusividade de juros de 10,9% ao mês e ali se decidiu que a abusividade dependia de prova cabal a ser efetuada pela vítima do alegado abuso. Sobre os ombros combalidos do cidadão devedor o Tribunal da Cidadania pôs o pesado fardo desse oneroso encargo de provar que 10,9% ao mês era necessariamente abusivo mesmo numa inflação de 5% ao ano. Nesses Recursos Especiais ns. 407.097/RS e Resp. 420.111-RS, precursores da Súmula 382 - o CDC – Código de Defesa do Consumidor – saiu com o rosto de tal forma desfigurado que mais parecia um projeto transgênico gerador de um CDB ou código de defesa dos bancos. A decisão em que as “premissas” da Súmula 382 começaram a germinar foi adotada, então, por um voto médio. Os vencidos foram Antônio de Pádua Ribeiro e Sálvio de Figueiredo que defenderam o equilíbrio dos contratos bancários pela aplicação da taxa SELIC mais juros de 6%. Os vencedores se dividiram. Quatro ministros, Carlos Alberto Menezes Direito, Ari Pargendler, Nancy Andrighi e Castro Filho votaram no sentido de que 10,9% ao mês não era, em si mesmo, uma taxa abusiva. (naquele momento, a inflação era de 5% ao ano]. Quem viesse a alegar a abusividade tinha de demonstrá-la cabalmente [sic]. Três ministros Barros Monteiro, Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Júnior foram mais radicais: defenderam a tese de que "a taxa de juros contratual não pode ser reexaminada em juízo", rendendo-se ao velho culto dos pacta sunt servanda, cujos deuses pareciam soterrados pela função social do contrato. Assim, enquanto os quatro primeiros, Menezes Direito à frente, produtor de um extenso voto importado de outro recurso especial, jogaram pá de cal no princípio da inversão do ônus da prova [CDC, art. 6º, VIII] e desconsideraram a regra da nulidade de prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas [CDC, art. 6º, inc. V], os outros três ressuscitavam, em toda sua plenitude, o princípio dos pacta sunt servanda para impedir que a abusividade pudesse sequer ser questionada pelas vítimas do abuso. Durante seis anos essa metástase foi lentamente corroendo o tecido do CDC sem que a comunidade jurídica dos consumidores conseguisse reagir contra a letalidade do mal oculto naquelas “premissas” que acabam de gestar a Súmula 382. Na sessão de julgamento em que esses pressupostos foram assentados, o Ministro Menezes Direito registrou, em seu longo voto, que “a seu pedido” [sic] encomendara trabalho sobre o spread bancário a professores da Fundação Getúlio Vargas com base no qual atingiu as conclusões de que “uma taxa de 10,9 ao mês não se pode presumir abusiva”, mesmo numa inflação de um dígito. Agora, depois da consagração da tese, com a adesão de novos Ministros em decisões recentes, as mãos dos juízes foram algemadas e as chaves jogadas ao fundo do poço como se diria na novela das Oito. Fato nada auspicioso. Essa fórmula da inequação, em cujo étimo se encontra a raiz da palavra igualdade com sinal contrário, revela que atrás da taxa “superior” a 12% ao ano, escondem-se, na verdade, taxas de 12% ao mês ou, capitalizando, 289% ao ano que é um número enquadrável na Súmula que inclui, na sua estante de juros, qualquer número acima de 12% ao ano. Chegou a alvitrar-se, no Resp 1.061.530, qual seria o parâmetro do abuso e começou de desenhar-se uma figura nova: a taxa média do mercado para operações similares. Como o mercado é cartelizado por envolver economia de grandes bancos mas em pequeno número, o consumidor sempre terá dificuldades de provar que a taxa que o escraviza é abusiva... se ela estiver situada na media dos abusos do mercado. O que está por detrás da Súmula, portanto, são números muito distantes dos 12% ao ano. O não-dito no texto da Súmula é que as instituições financeiras não se sujeitam a limitação de juros [sic]. A elas não se aplicam os arts. 591 e 406 do CC. A palavra mês é cuidadosamente encoberta pela inequação “superiores a...”. Por isso se diz que juros superiores a 12% ao ano por si só não indicam abusividade e concede-se que, “em casos excepcionais” [sic], os contratos poderão sofrer revisões se “a abusividade for cabalmente demonstrada” [sic]. “O entendimento hoje vigente nesta 2ª. Seção – diz o Acórdão em comento, indica que a regra para juros remuneratóros é a livre pactuação” [sic] e nisso se revela o que a Súmula encobre. O pano de fundo da Súmula 382, portanto, é um cenário de luto do Código de Defesa do Consumidor com suas regras de inversão do ônus da prova, da nulidade das cláusulas onerosas e abusivas em defesa do cidadão. O curioso é que a Súmula é editada quase ao mesmo tempo em que as autoridades monetárias do COPOM anunciam, uma vitória da política monetária na previsão de juros de 9,25% ao ano. Assim, enquanto se festejam juros de um digito ao ano, a inequação da Súmula consagra juros infinitos ao mês. A Súmula, portanto, é uma cilada, uma armadilha, algemas para o pulso de juízes inconformados, sensíveis aos injustiçados atraídos pelas facilidades dos sonhos de consumo, pessoas desarmadas que, além de não terem segurança na via pública, perdem-na também na via judicial. Aos consumidores podem ser dedicados os versos do pouco lembrado vate fluminense Eduardo Alves da Costa “No caminho com Maiakovski”. “Na primeira noite – diz o poeta - eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”
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